Reality Show
Por Frei Betto
Sim, quero ver a tua vida em detalhes, minuto
a minuto, e ouvir as palavras que jorram de tua boca, rir teu riso e enraivecer-me
com teu rancor, assistir à tua paquera, ao teu namoro, ao teu gesto de carinho,
à tua transa, espelhando tua beleza em minha inteligência.
Quero abandonar amizades, trabalho, livros e
lazer e, de olhos pregados em tua magia, absorver a tua arte de movimentar-se
no labirinto da quimera, livre de dores e afazeres, mergulhada na fama e na
fortuna.
Venerarei o teu ócio na vitrine, exibindo-se
sem pudor a milhões de olhos, despida por infinitas imaginações, liberta das
grades odiosas dessa existência de penúria, anônima, escrava da rotina atroz de
quem jamais aprendeu a voar.
Abrirei em meu monitor a porta da tua casa
mágica e, sob o peso de minhas carências, ingressarei virtualmente em tua
liberdade, no teu gozo, no teu charme, como quem toca com os olhos veneráveis
ícones que nos fazem transcender a mediocridade cotidiana.
Minha fidelidade ao teu exibicionismo será a
chancela que proclamará tua vida como real e, do lado de cá, buscarei minha
alforria em tuas loucuras, em teus jogos e em tuas danças. Quero decifrar em ti
minha própria intimidade, rasgar minha alma em tuas mão e deixar minha mente
impregnar-se dessa ilusão que faz de mim teu pequeno irmão.
Recobrirei minha realidade com tua fantasia e
farei de teu espetáculo o brilho de meus olhos vazados, nessa permuta hipnótica
de quem busca complacência com seus próprios limites para tentar encobrir a
mesquinhez que me corroi.
Ficarei atento ao teu banho, ao teu sexo, à
tua ira e às tuas refeições, fiel à exposição perene deste teu desprovido de preocupações
e conteúdos, entregues a esta liberdade que faz de ti o que não sou, e me
permite projetar em teu vigor as minhas fraquezas e em teu esplendor o gosto
amargo de meu anonimato.
Verei em tua janela, que se abre em minha
casa, a subversão de todos os valores, como se nos cômodos que abrigam
findassem todos os princípios, escorrendo pelo ralo tudo aquilo que soava como sinônimo
de decência. Ampliados pela eletrônica, meus olhos contemplarão as tuas
intimidades mais ousadas. Sentirei os teus odores beberei o teu suor.
Esticarei o meu olhar até os limites
proibitivos do escárnio e, quem sabe, verei o teu rancor extirpar toda a
agressividade que jaz em meu peito e a tua voracidade explodir em taras que
haverão de suprir os meus desejos mais ignóbeis e saciar as minhas pulsões mais
abjetas.
Deste lado da tela, sentirei os teus
sentimentos e comungarei as tuas emoções, vendo-te virar pelo avesso nesse
zoológico de luxo, exposta à multidão como carne no açougue, a engendrar no
balcão do voyeurismo a gorda soma dos teus patrocinadores.
Em ti livrar-me-ei de todo ideal que não seja
fazer da vida um jogo de entretenimento, a sedução epidêmica como sucedâneo de
quem não atinge as profundezas do amor, vendo-te representar a ti mesma sob os
aplausos invejosos de meu olhar sequioso, preso ao teu desempenho huit-clos.
Aprisionarei tua vida em meu olhar,
tornar-me-ei teu carcereiro eletrônico, decidindo o teu presente e o teu
futuro, absolvendo-te ou condenando-te, juiz supremo que se ignora refém do
próprio equívoco.
Inebriado com tuas loucuras, te elegerei
objeto supremo de minha admiração, deixando-me devorar pelo teu sucesso, do
qual farei tema todas as minhas conversas.
À espera de que os corvos venham devorar o meu
coração, quero ser consumido e consumado por ti, arrancando de meus olhos todas
as escamas, até que eu possa ver também o marido espancar a mulher, o filho
estuprar a mãe, o pai assassinar a filha, enfim, o horror, o horror, o horror,
pois sei que o show não pode parar e que o seu limite é não ter limites.
Postado por: Wacinom
Hora: Gran Finale
Data real: 02/04/2014